É difícil lembrar os perrengues da montanha quando ainda estamos arrumando as malas para sair, no conforto de casa. Check list feito: três malas e três mochilas cheias, muitas blusas dry-fit, calças de trekking, meias e luvas finas e grossas, as camadas corta vento, os casacos de pluma, botas e os sleeping bags, com uma camada de embalagens de comida liofilizada cobrindo tudo isso. A caminho do aeroporto ainda não tinha caído a ficha que eu estava indo para outra expedição.
No fim do dia 3 de Fevereiro chegamos a Mendoza, a capital dos vinhos na Argentina. Depois de colocar as bagagens em dois taxis, fomos para o hotel NH Cordillera, no centro da cidade. Fomos super bem recebidos pelo pessoal do hotel e depois de deixar tudo no quarto descemos para encontrar com os guias, o Carlos e o Eduardo.
Dia 4 acordamos relativamente cedo para ir tirar os permits para entrar no Parque Provincial do Aconcágua e depois alugar as botas duplas e comprar os isolantes térmicos para colocar embaixo dos sleeping bags. Os dois próximos dias foram para checar se estava tudo lá, conhecer os companheiros de viagem, comer bem e tomar muito helado.
Na segunda-feira, dia 7, saímos depois do almoço para Puente Del Inca, à 2800m. Foram três horas de van até o pequeno povoado andino, mundialmente conhecido pela sua formação natural sobre o rio das Vacas no nordeste da província. Esse povoado é visitado principalmente no inverno, onde as hospedagens recebem esquiadores de todo o mundo. Ficamos inclusive em uma dessas hospedagens, com quartos coletivos. Foram os primeiros ares de montanha que respiramos.
Aproveitei o fim de tarde para tirar foto com os logos dos patrocinadores, rearrumar minha mochila, conhecer o povoadinho e tomar meu último banho decente. De noite jantamos juntos e jogamos um pouco de pebolim antes de dormir.
CONFLUÊNCIA E PLAZA DE MULAS
Primeiro dia oficial de expedição! Saímos perto das 10h para a entrada do Parque Provincial. Fomos de van até a entrada de Horcones e mochila nas costas! De hora em hora, o grupo todo parava para descansar e tomar água. Logo no começo da trilha comecei a sentir minha bota pegando no calcanhar. Tinha comprado ela há pouco tempo, mas não tinha tido problemas nas caminhadas anteriores. Talvez por causa do terreno mais irregular, a costura mal feita da bota formou uma bolha razoavelmente grande no calcanhar. Por volta das 16h fomos recepcionados no primeiro acampamento do parque pela equipe muito simpática da Aymara, a empresa responsável pela nossa expedição. Nos serviram frutas, bolachas e suco de lanche, foi ótimo comer um pouco depois do dia quente de caminhada. Cheguei lá muito irritada com a bolha e sem perspectiva nenhuma de melhora, mas como chegamos cedo tive tempo de descansar um pouco e esquecer do incomodo.
Antes de jantar ainda tivemos que passar no serviço médico para receber o aval de continuar ou não. Ninguém no grupo teve problema, mas preciso dizer que não simpatizei nem um pouco com o médico de lá, principalmente depois que ele disse que menores de 18 anos têm grandes chances de desenvolver edemas pulmonares, hunf! Depois de saber que todos nós estávamos em excelentes condições físicas para ir até Plaza de Mulas, voltamos para a barraca refeitório para jantar. Primeira noite de temperaturas mais amenas e já recorri ao meu casaco de plumas.
Duas más notícias pela manhã! Segundo a programação, neste dia (09/02) sairíamos para caminhar até o Mirador da Face Sul, à 4000m, como parte do processo de aclimatação. Indo tomar café, ouvimos que tinham dois argentinos presos na parede sul há uns três dias e que o resgate estava tendo dificuldade em chegar até eles. Sendo assim a administração do parque proibiu qualquer grupo de seguir pela trilha que levava à Plaza Francia, provavelmente para evitar olhares curiosos. Ou seja, mission aborted! A segunda má noticia foi que tivemos a primeira baixa do grupo, uma das meninas teve que descer
Me preparei então para um delicioso dia de ócio no acampamento, mas minha alegria durou pouquíssimo. Em meia hora a Aymara recebeu um rádio que o resgate tinha conseguido ajudar os dois a sair da parede e a via estava liberada.
O dia estava muito bonito e até que bem quente para a altitude em que estávamos. Como no primeiro dia fomos parando de hora em hora para hidratar e reforçar a camada de protetor solar. Quanto mais subíamos mais a paisagem ficava parecida com Marte, aqueles campos enooooormes, vermelhos e com muitas pedras no meio do nada. A diferença realmente era só aquele bicho enorme de pedra e gelo lá no fundo, contrastando com todo o resto em volta.
Impossível imaginar aqueles dois caras presos lá em cima por tanto tempo! Uma das paredes de gelo mais desafiadoras do mundo impõe ainda mais respeito quando vista de perto! Parei um pouco antes do grupo para gravar um videozinho e aproveitar um pouco o sentimento de insignificância perto dessa natureza avassaladora. Filosófico né? Acho que quando se começa a andar pelas partes altas do planeta, nossa cabeça entra na maior faculdade de filosofia existente, nós mesmos!
No outro dia, já saí da barraca cansada. Estava muito frio ainda, já que o sol não tinha chego até Confluência. Andei a primeira meia hora tremendo de frio e me animei muito quando senti o sol batendo no meu rosto. Fomos caminhando em um ritmo bem tranquilo e vários grupos passaram como foguetes por nós.
Chegamos em mais ou menos uma hora até o começo da famosa Playa Ancha, um planalto muito comprido e largo, um pesadelo para os andinistas, principalmente se o clima não estiver bom.
De Ibañez no final da Playa Ancha pra frente nos disseram que era mais sossegado e logo se chegava no Campo Base. HAHAHA! A tal da Playa Chica deu tanto trabalho quanto a Ancha. Um sobe e desce interminável, que acabou separando nosso grupo. Segui mais na frente, achando que assim chegaria logo, ledo engano.
Certo tempo depois avistamos de longe a Plaza de Mulas e ainda parecia muito longe. Enfim, passamos por um dos refúgios abandonados e encontramos um dos guias da Aymará, o Pedro, que veio ajudar no último trecho. Subimos a Cuesta Brava (realmente bravíssima, muito inclinada e com pedras soltas) em mais de uma hora. A última meia hora demorou um século para passar e finalmente vi a bandeirinha da Argentina, mostrando que chegamos no acampamento base do Aconcágua!
Comemoramos bastante ali mesmo, até reunir as últimas forças para chegar às barracas da expedição (as expedições da Aymara, que era a nossa empresa local, estavam montadas do oooutrooo lado do acampamento). Dois dos nossos colegas de expedição que andavam mais rápido tinham chego umas duas horas antes e já tinham montado elas. Fomos direto para a barraca refeitório e foi uma delícia tirar aqueles tênis super largos! Antes do jantar nos serviram melancias e bolachinhas e tomei meu primeiro banho de gato da viagem.
Dia seguinte foi de descanso. Também, ninguém estava com disposição nem de sair da barraca, não dava para ser diferente. De manhã saí para conhecer o resto do acampamento.
Durante meu passeio matinal notei a presença constante de helicópteros amarelinhos. Eles paravam em cima dos inúmeros “banheiros” para retirar os dejetos e leva-los não sei para onde. Os tais banheiros eram caixas de metal com um buraco no meio e um barril em baixo, e era esse barril que os cococópteros levavam, haha!
De tarde quem ia para a parte alta da montanha foi treinar com as botas duplas em uma encosta do lado das nossas barracas, no caminho que sobe para o primeiro acampamento. Peguei a bota alugada da extinta Koflach, meus crampons e encontrei com o pessoal ali por perto. Os blocos de gelo que íamos usar para testar os crampons tinham derretido e no lugar só tinham alguns penitentes, aí o Carlos resolveu só andar com as botas, subindo e descendo. Até que foi rápido, mas não achei muito simples não, afinal você perde muita mobilidade dos pés. Depois só tivemos que aprender a colocar e tirar os crampons e fim, lição aprendida. No próximo dia íamos subir pelo mesmo lugar de novo para ir deixar alguns mantimentos na Plaza Canadá, à 5000m.
Acordar antes do sol chegar na barraca é cruel! Arrumei a mochila mas não estava com a mínima vontade de sair nesse dia, estava nublado e ventando e o sol não deu nem pinta que ia aparecer. Começamos a subir eee começou a nevar. A primeira hora andando foi com floquinhos brancos caindo do céu. Quando olhava para baixo dava para ver todo o acampamento e a Playa Chica branquinhos. Caminhamos em um ritmo bem tranquilo e levamos mais ou menos 5 horas para chegar a Plaza Canadá. O dia sem sol fez com que a temperatura caísse mais do que imaginávamos e acabei passando frio lá em cima. Deixamos a comida liofilizada em Canadá e depois de um lanchinho rápido descemos correndo a encosta de volta para o acampamento base. Pegamos neve de novo na descida e foi um alívio chegar na barraca quentinha lá embaixo. Tenho que dizer é impressionante como o tempo muda na montanha, quando chegamos o céu estava todo em tons de cinza e a montanha estava todo coberta de nuvens; quase uma hora depois o céu estava super limpo e o Aconcágua parecia pegar fogo com o sol se pondo.
Dia 13/02 foi nosso segundo dia de descanso. Se o roteiro fosse seguido à risca, esse dia seria o dia de ir até o Cerro Bonete, à 5000m, para ajudar no processo de aclimatação, e depois teríamos dois dias consecutivos para descansar antes de subir para o ataque, mas depois de algumas conversar concluímos que era melhor intercalar os dias de descanso.
Mais uma vez tivemos que sair antes do sol nos alcançar, mas não sofri tanto com as extremidades formigando de frio, acho que acostumou, sei lá. Logo chegamos ao famoso refúgio desativado e fiquei muito curiosa para ver como é lá dentro. Saindo de lá a subida era bem complicadinha, muitas pedras soltas e grandes e uma inclinação razoável. Um passo para cima e três para baixo deslizando junto com as pedras. Eu estava mais a frente, mas conseguia ouvir minha mãe respirando lá embaixo e eu só pensava nisso; tomara que ela consiga, tomara que ela consiga. O Cerro Bonete não é daquelas montanhas lindas, até porque tudo naquela parte dos Andes se resume a pedra em cima de pedra, e eu estava bem pouco motivada para subir. O que ainda me puxava para cima era pensar que seria uma prova de fogo, se não desse ali, provavelmente não daria para continuar montanha acima, e queria demais conhecer um pouco mais dos meus limites.
Nos zigue-zagues para chegar ao pé do Bonete minha energia estava low profile e comecei a cantar e contar meus passos para distrair. Até que funcionou bem! Eram mais ou menos 200 passos e uma paradinha curta. Quando chegamos às pedras já dava para ter uma visão de grande parte da cordilheira para o outro lado. É realmente incrível a extensão dos Andes!
Andamos mais de uma hora ainda em uns lugares que exigiam certa concentração (juro que nessas horas me sinto em filmes de ação) e finalmente chegamos no cume do Cerro Bonete! Uhul, parte um do desafio estava vencida! Estava tão exaurida que não pensava nem em tirar foto, nem em comer, nem em nada. Meus pais chegaram um pouco depois e comemoramos juntos em silêncio. A perspectiva de voltar tudo aquilo ainda não era das mais animadoras. Depois de comer um pouco e recuperar um pouco das forças, tiramos fotos individuais e do grupo todo e começamos o caminho de volta. Enquanto estávamos lá em cima, o tempo virou, e o vento que chegou esfriou completamente o tempo.
Não digo que descer é mais fácil, mas com certeza é mais rápido. De bota dupla (que tem a sola mais lisa do que as outras botas) é ainda mais fácil deslizar sobre as pedras, e se não fosse o tremendo esforço muscular para segurar o corpo em pé, em uma hora eu chegava lá embaixo. Mas a fadiga de todos os músculos inferiores falou mais alto e eu caí muitas vezesDesci o resto do caminho até o refúgio bem devagarzinho com medo de cair de novo. Minha mente já estava meio nebulosa e foquei na minha barraca no acampamento, faltava pouco! Encontramos com o Capy assim que chegamos, fiquei feliz em ver ele lá, já que em Mendoza ele não nos deu certeza que nos acompanharia. Chegando às barracas só tive forças para comer e dormir.
Como eu AMO não ter hora para levantar! Só acordei com o calorzinho do sol batendo na barraca e só saí dela quando meu sleeping bag para -40 graus, começou a me sufocar lá dentro.
Todos os dias o Carlos e o Capy checavam as previsões do tempo para os próximos dias e a última que recebemos previa as janelas de bom tempo para os dias 20 e 21, o que atrasaria um dia o nosso programa, mas sem maiores problemas.
A tarde foi toda consumida pelas arrumações para os próximos dias. Passaríamos entre cinco e oito dias nos campos altos, e nada podia ficar para trás. A comida já estava toda no Campo 1, então na mochila ia só sleeping bag, os dois isolantes térmicos, os crampons, casaco de pena, snacks para comer durante as caminhadas e anorak. Como três dos oitos clientes que iam subir, desistiram, o peso que os carregadores carregariam referente a essas pessoas ficou para a gente, e cada um levou bem pouca coisa nas costas no primeiro dia. Levamos para a barraca refeitório todo o equipamento para o Carlos revisar e depois voltamos para as barracas para já deixar as marinheiras organizadas com o que ia ficar em Plaza de Mulas
A janta não foi muito tranquila, estavam todos bem ansiosos. Nessa altura, nosso grupo de quinze pessoas, estava reduzido a nove; eu, meu pai, o Celestino, o German, o Ivan e o Carlos, fechávamos o grupo que ia subir, a Tainah e a Silvia que voltariam para Mendoza pela manhã, e minha mãe que ia ficar no campo base até a gente voltar. Não faltaram perguntas sobre o que estava por vir, sobre a logística lá de cima, a divisão de barracas, o horário de saída para o dia de cume, o horário máximo para estar lá em cima, as possíveis complicações. Até pareceu que nunca conversamos sobre essas coisas! Mas a ansiedade reinava naquela hora e cada um queria ter certeza das possibilidades e impossibilidades para os próximos dias.
Por Ayesha Zangaro
Parabens, Ayesha! Sucesso sempre, e muitos cumes a mais para você!
Que privilégio ter feito parte desta expedição e ter acompanhado tão de perto a força de vontade desta pequena grande guerreira! Parabéns!! Agora, rumo ao Elbrus!!!